Um dia daqueles

"Deve ter sido um dia daqueles", disse-me a minha filha falando de ontem. Tive que concordar mentalmente; a manhã dissolvendo-me a paciência apesar do treino budista, enquanto o açúcar radioativo se divertia a circular-me pelas veias. No I.P.O., um grupo de quatro galos entretinha-se a infiltrar uma pequena selva de ervas selvagens, qual bando de vietcongues. Bons auspícios. À tarde,o velório do Nuno Gonçalo. A somar-se ao luto, o ataque insidioso da humidade a penetrar-me até ao tutano. As igrejas não foram feitas para o conforto dos corpos mas para refrigério das almas, dizem-me. Ainda assim. 

Foi um dia daqueles. O Relógio do Apocalipse adiantado e agora a 89 segundos do fim, nunca tão perto a humanidade da hecatombe. Recordo 'The Fog of War', o extraordinário documentário com e sobre Robert S. McNamara, o homem que atravessou todas as guerras do seu tempo, dos bombardeamentos incendiários sobre Tóquio até ao napalm do Vietname (talvez fritando os antepassados dos galos do I.P.O.), recordando que nunca como na crise dos mísseis de Cuba estivemos, mesmo mesmo, à beira da destruição. Posição do ´Doomsday Clock' nessa altura? 7 minutos para a meia-noite. Go figure. "Morrem sempre muitas pessoas em Janeiro", fez notar a minha mulher. Não comprovei a verdade estatística mas a crise de Cuba foi em Outubro e não era disso que ela falava, mas sim do Nuno Gonçalo.

Enquanto uns nascem, outros morrem. E outros ainda sobrevivem, com açúcar radioativo a percorrer-lhes as veias. A 28 de Fevereiro de 1936 nasceu Ismail Kadare. "Quem neste mundo não ansiou por um ente querido e nunca disse: 'Se ele ou ela pudesse voltar, pelo menos uma vez, só mais uma vez...?' Apesar da evidência de que isso nunca poderá acontecer. Nunca para sempre. Certamente é essa a coisa mais triste do nosso mundo mortal e  a sua tristeza continuará a envolver a vida humana como um cobertor de neblina, até à sua extinção final.”  




   

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